quinta-feira, 1 de março de 2018

Ultima noite na antiga casa

“A noite chegara e a casa estava muito escura e fria.
A electricidade tinha sido desligada naquela tarde, quando a maioria dos nossos pertences já estavam empacotados e arrumados.
Era estranho observar a rua através das janela… Imaginar que no dia seguinte iríamos observar uma outra rua, através de uma outra janela.
Velas dividiam-se entre os cómodos da casa, de modo a oferecerem iluminação suficiente.
Caixas empilhadas jaziam no chão e os poucos móveis que possuíamos estavam encostados a um canto na sala, criando uma maior amplitude à casa e tornando-a mais triste.
À medida que atravessávamos cada divisão, éramos seguidos pelas sombras…
Desesperadas, tentavam gritar mais alto que as nossas vozes ressoando no espaço.
O meu irmão pequenino percorria atentamente os percursos que as sombras faziam na parede e tecto. Será que também ele “os” podia ver?
Sentei-me com Elisandra no centro do nosso quarto. Algumas sombras nos seguiram, entre elas o esqueleto curvado e a idosa que usava preto.
Elisandra acendeu uma vela que colocou entre nós duas. À medida que conversávamos a vela parecia oscilar mais do que seria normal. Eram eles…
A nossa conversa era apenas um reflexo da nossa curiosidade quanto à nova casa e nova cidade… Novos colegas de turma da escola… Isso ainda os irritou mais.
A certa altura a chama da vela remexeu-se tão furiosamente que atingiu a franja de Elisandra.
Em pânico ela abanou a cabeça, tentando apagar o fogo que se tinha formado, mas em vão.
Gritei desesperada atraindo os nossos pais ao quarto e apenas nessa altura a chama no cabelo da minha irmã se apagou.
O odor a cabelo queimado pareceu sossegá-los porque só voltaram a manifestar-se quando os senhores das mudanças transferiam os últimos pertences para a transportadora.
Uma caixa de papelão, contendo cassetes do meu pai, caiu no chão várias vezes, fazendo com que o senhor que a transportava franzisse os olhos, estranhando.
Duas pernas de uma mesinha partiram-se à porta de casa, sem que ninguém a tivesse forçado.
As paredes pareciam estremecer à medida que a casa ia ficando vazia.
As sombras estavam loucas, zangadas…
Não aceitavam a nossa ausência, não queriam que nos fossemos embora…
Mas fomos. E não nos puderam seguir…”

domingo, 1 de novembro de 2015

O guardião nocturno



Vinda de um dos anexos e munida do seu lampião a querosene, Natália, a empregada da qual mais gostava, já se aproximava. De seguida, iria acompanhá-la até uma zona do bosque onde tudo se tornava menos escuro. Talvez por maior ausência de árvores.
Nessa altura voltaria para a fazenda, para dar inicio ao seu dia de trabalho árduo.
Tal como sempre fazia, lamentaria a impossibilidade de a acompanhar até mais longe ou mesmo de a acompanhar até à escola, caminho que Doroteia percorria diariamente, durando cerca de duas horas.
Caminhavam há alguns minutos, quando uma ave passou muito próximo das duas cabeças.
- O que era? – Perguntou Doroteia.
- Uma linda coruja.
- Fazem mal?
- Claro que não! – Respondeu pacientemente Natália.
- Porque voam a esta hora?
- Ora, são guardiões do bosque. Tal como existem guardiões durante o dia, estes são os guardiões da noite. Protegem a Natureza durante a madrugada. E também protegem a menina Doroteia.
Doroteia sorriu e deu por si virando-se inconscientemente para trás, procurando pela bela ave branca.
Caminhavam há cerca de 25 minutos em silêncio. Sendo o único som perceptível os seus passos tranquilos.
Chegaram entretanto à zona de menor escuridão.
- Lamento não a poder acompanhar durante mais tempo menina Doroteia. Tenho de voltar para lavar os lençóis.
– A partir daqui não sinto medo. – Mentiu Doroteia.
Despediram-se e à medida que avançava, Doroteia ia virando-se para trás, observando o círculo de luz do lampião desvanecendo-se.
Nessa altura, tal como diariamente acontecia, o coração da mocita começou a bater mais aceleradamente.
Quando a luz proveniente do lampião desapareceu por completo, Doroteia olhou em volta, sentindo-se indefesa.
A escuridão da madrugada parecia-lhe maior... Os braços das árvores podiam agarrar-lhe a qualquer momento?
O mínimo som fazia-a fraquejar.
Mas de repente, eis que surgiu novamente a bela coruja…
Doroteia arregalou muitos os olhos, encantada pela segunda aparição do misterioso animal.
Esvoaçando lentamente, a ave foi de seguida pousar no arbusto mais próximo e assim manteve-se, observando Doroteia muito atentamente.
A menina sorriu e caminhou mais devagar, aproximando-se da árvore.
Fitaram-se durante o que pareceu a Doroteia um longo minuto…
Entretanto o som de folhas secas sendo pisadas despertou a sua atenção, e virou-se para o lado esquerdo perscrutando atentamente.
Lentamente foi surgindo a figura de uma mulher magra, de cabelos muito compridos e usando umas vestes, que àquela hora pareciam-lhe cinzentas.
Doroteia sentiu o seu coração recomeçar a bater aceleradamente, e expectante, não deixou de observar a senhora.
Esta, assim que deu pela sua presença, observou-a durante poucos segundos, para de seguida, encolher-se, escondendo-se atrás da mesma árvore pela qual tinha surgido.
Doroteia parecia sentir o coração perto da boca e muito baixinho choramingou.
Procurou a coruja com o olhar, esperando encontrar algum conforto, mas esta tinha desaparecido.
O seu pavor aumentou quando viu a cabeça da mulher voltar a surgir muito lentamente por trás da árvore.
Espreitava-a… Mas o que queria dela?
Impulsivamente a menina deu um passo para trás, escondendo-se atrás da árvore onde antes a coruja tinha pousado.
Passos repentinos revelaram que a mulher saíra do seu esconderijo e avançava.
Nesse momento surgiu pela terceira vez a coruja. Rodeou Doroteia por duas vezes, tocando-lhe com as suas asas frescas, antes de se dirigir para o lado direito.
Sentindo-se guiada, Doroteia seguiu-a, e os passos furiosos da estranha mulher aumentaram.
Doroteia começou a correr vendo a coruja voar mais rapidamente…
Os passos ameaçadores atrás de si, também pareciam mais rápidos.
A um determinado momento, a coruja avançou por uma pequena abertura.
Doroteia seguiu-lhe o exemplo e tropeçou, cambalhotando por uma descida, até cair no fundo.
Atordoada, olhou em volta e percebeu que encontrava-se numa zona protegida.
Meio escondida por arbustos estava uma pequena barraca de madeira e foi na sua direção que a menina caminhou, ignorando o livro escolar e o saco contendo o seu lanche, caídos na descida.
Já refugiada e deitada no interior da barraca, Doroteia observou o exterior.
Para seu alívio, a estranha mulher não a seguira até lá.
Sentindo o seu coração acalmando aos poucos Doroteia estava quase fechando os olhos.
Um vulto branco e brilhante despertou a sua atenção… Doroteia observou a coruja, cuja aparição se dava pela quarta vez. Pousada no ramo da árvore em frente, observava-a atentamente.
Doroteia retribuiu o olhar e sorriu-lhe muito ternamente.
No seu coração sentiu profunda gratidão, encanto e amizade por aquela presença tão misteriosa…
Observaram-se durante poucos minutos, antes de Doroteia fechar os olhos e adormecer.

Horas depois, o céu ofereceu a seu ritmo tonalidades mais claras, até que amanheceu completamente. Nessa altura, Doroteia acordou e olhando em volta, lembrou-se de onde estava e o que acontecera…
Àquela hora, nenhuma mulher poderia assustá-la. Doroteia não sentiria medo. O Sol brilhava. As árvores tornavam-se simpáticas…
O seu segundo impulso foi procurar pela sua amiga protectora… Mas a coruja desaparecera sem que se apercebesse.
Desiludida, abandonou a cabana sentindo dores no corpo devido à queda que dera horas atrás.
Encontrou o seu livro e o saco com facilidade, e de seguida avançou com cuidado pela subida íngreme.
Por várias vezes, durante o percurso para a escola, Doroteia virou-se para trás, esperançosa de reencontrá-la …
Intrigada, perguntou-se porque nunca a vira antes… Perguntou-se se a voltaria a encontrar…
Recordando a explicação de Natália sobre as corujas, como animais protectores, Doroteia sentiu-se esclarecida.
Sorriu perante a expectativa de reencontrar a sua amiga protectora na madrugada seguinte, e, determinada atravessou o portão escolar.




quarta-feira, 8 de julho de 2015

A "anja"



Muito alegres descemos os degraus da casa.
Pequenos grupos de pessoas cruzavam-se connosco. Munidas de toalhas e guarda-sóis pareciam alegres e pacientes por chegar à praia. 
Um menino baloiçava o seu baldezinho que continha utensílios de plástico para brincar na areia.
A areia brilhante aquecia-nos os pés e o odor a praia fazia-nos sonhar.
A possibilidade de atravessarmos a pequena linha de comboio deixava-nos com uma sensação de responsabilidade.
Usávamos fatos de banho idênticos. Vermelhos com listas brancas. De gosto singelo, a nossa mãe vestia-nos e penteava-nos como se fossemos gémeas. Os nossos rostos diferentes criavam o contraste perfeito.
Chegando à praia, a descontração que tínhamos inicialmente desvaneceu-se por completo ao encontrarmos muitas pessoas instaladas na areia ou banhando-se alegremente.
Como não levávamos nenhuma toalha, a primeira reação que tivemos foi encaminharmo-nos para a água.
As primeiras ondas refrescaram-nos os pés…. Demos gritinhos de frio e fomos avançando devagarinho e deixando que os nossos corpos se habituassem à temperatura.
Era deliciosa a sensação que a água fresca fazia ao embater com força nos nossos corpos.
Avançámos até um limite em que podiamos ver adultos ocultos pela água até à cintura.
Poucos momentos depois, senti que as ondas tinham mais força que a minha firmeza e deixei-me cair na água. Por muito que tentasse levantar-me, sentia novas ondas empurrando-me. Comecei a sentir desespero, mas não conseguia chorar…
Foi quando vi as suas pernas... Eram fortes, tal como o resto do corpo e usava um fato de banho preto. Vi-a debruçando-se perto de mim e segurou-me pelos braços…
Assim que senti o ar, respirei com alívio e afastei-me daquele ponto, ao mesmo tempo que me virava para trás tentando ver a senhora que me tinha ajudado… Mas não encontrei ninguém que usasse um fato de banho preto…
Avancei para a margem da praia… Encontrei minha irmã que olhava para todos os cantos, procurando por mim.
Decididas, voltamos para o local junto às casas, e onde nos tinha sido permitido brincar…
Chamei-lhe de "anja" e ganhei respeito às ondas nesse dia.

(Imagem encontrada na Internet)